Sem Abrigo

É uma das primeiras coisas que se percebe ao entrar em Lisboa, não de carro mas a pé, pelas ruas e pelos parques: os sem-abrigo que habitam a nossa capital.
O primeiro contacto visual com estes habitantes choca e incomoda o visitante desprevenido; estão ali, e ali, e por todo o lado, de repente mesmo ali perto, a um metro de nós, na entrada de um prédio, no banco de jardim, frente a esta montra, escondidos por cobertores ou cartões ou restos de algo outrora humano.

Mas o tempo passa e o olhar começa a tornar-se lisboeta, começa a ficar treinado a olhar em frente e para cima, nunca para baixo e para os lados; o cérebro conforta-se com o hábito, como se toda a Lisboa que aqui temos fosse um dormitório a céu aberto, como se fosse normal existirem inquilinos do cimento e da madeira dos bancos da avenida.
Desta forma, habituamo-nos. E todos passamos por eles e todos sabemos que estão lá, mas, por obra da graça cosmopolita, eles deixam de existir: se não os olharmos e se não os sentirmos, não existem mais. Não são.

Na minha rua também há sem-abrigos.
E há um que dorme do outro lado da rua, em frente ao meu prédio, cavalheiro para os seus 40 anos, com os seus sacos e cobertores e papéis, que surgem com ele ao início da noite e desaparecem misteriosamente ao nascer da manhã.
Mas este é diferente dos outros.
Este escolheu como residência fixa uma entrada de prédio recuada, metida para dentro, feita de mármore e com uma ressonância acústica extremamente ampliadora.
Cada vez que mexe num plástico, ecoa por toda a rua.
E ressona.
Ressona como um trombone asmático, seguro e confiante.
Ressona como um Pavarotti adormecido, amplificado pela arquitectura acolhedora.
E por isso, incomoda.
Porque toda a gente vira o rosto, corre as cortinas, baixa os estores, mas ele continua sempre ali, presente. A ressonar.
Estou convencido de que o faz de propósito.

12 comentários:

Anónimo disse...

Quem ressona não faz de propósito...que maldade de comentário.

S. disse...

É um manifesto. Se calhar, saiu de casa da família porque era um estorvo, e mudou-se para a rua. Ali já não estorva ninguém. Ou estorva, mas ninguém tem ascendência sobre ele para lhe dizer para não o fazer. Se calhar, se ele fosse o teu vizinho do lado, já terias mais "coragem" (?) para o confrontar. Mas como mora na rua, e já é desgraçado que chegue, ninguém quer contribuir para mudar a situação, nem para bem, nem para mal...

Carlos disse...

Em relação a isso da maldade:
"Ironia

do Lat. ironia < Gr. eironía

s. f.,
figura de retórica que exprime o contrário do que as palavras significam e que serve para depreciar ou engrandecer um significado."

Carlos disse...

Bolas, isto às vezes é frustrante. Apetece-me escrever um texto em que falo sobre a frieza com que os habitantes de Lisboa convivem com os sem-abrigo e alguém (porquê anónimo?) acha que estou a fazer um comentário com maldade.
De onde vem esta cegueira generalizada?
Vou começar a escrever com gíria de sms de telemóveis, talvez funcione melhor com esta gente que só lê cabeçalhos e rodapés.
Fod%-#$, não há nada que me irrite mais do que a ignorância!

Anónimo disse...

Eu acho que quem faz um comentário deste género "...que maldade de comentário" é quem quer ignorar o que se passa à sua volta. Afinal o que está escrito aqui é só uma realidade ... e muito bem escrito por sinal.

Continua assim.

Beatriz

karmatoon disse...

Axo k fazx bem. Lol lol lol...

(Eu não escrevo mesmo assim, estava a gozar com o/a anónimo/a que não compreendeu o uso da ironia. E é tão importante a ironia. Afinal, é um recurso muito utilizado pelos comediantes, escritores, politicos, enfim, quase toda a gente que tem algo a dizer hoje em dia. Aliás, esta mesma explicação está impregnada de ironia. Outro exemplo? Ver próximo comentário deste que assina...)

karmatoon disse...

Podíamos fazer como alguns petizes por essa Europa civilizada fora, e começar a pegar fogo aos sem-ab rigo, também conhecidos como o tão chique nome de «indigentes». Somos mesmo um país de terceiro mundo, não somos? Até nisso ficamos atrás dos nuestros hermanos, já bastante avançados na arte de «botar lume ao pobrezinho». Já contam, aliás, com alguns folgazões mestres nesse mister e que conseguem sempre excelentes classificações nos mundiais da especialidade...

Anónimo disse...

Tu que não és de Lisboa, o que fizeste para mostrares o teu lado mais humano ao senhor? Amigo... o que conta são as atitudes, não as palavras! não ignoro ninguem, só não gostei da "piada" em engrandecer o signifivcado do ressonar em torno de um sem-abrigo. Estou curioso para saber o que fizeste de bom com esse senhor...

Carlos disse...

Ok,o direito de não gostar pertence-te, sem dúvida,
:-)
mas não era uma piada; era uma ironia (ver comment anterior)

Quanto ao que fiz de bom pelo senhor, estou a pensar em seguir a ideia do Karmatoon, não sei.

António Raminhos disse...

Queres outra maldade? Cá para mim foi exactamente por ressonar demasiado alto que a mulher o meteu fora de casa! Quanto à ideia do Karmatoon... se lhes pegassem fogo pelo menos não passavam tanto frio.

P.S. Vamos é todos para o inferno... Deus nosso Senhor castiga... forte e feio.

Anónimo disse...

A diferença no entendimento da ironia é que prefiro a do tó do samouco...ehehehe

João Pires disse...

Realmente é pena que a piada que recaia no sarcasmo e ironia passe totalmente ao lado da maior parte do público.