Um doce no Pingo Doce

São os loucos de Lisboa
que nos fazem duvidar
a Terra gira ao contrário
e os rios nascem no mar...

Ala dos Namorados

Pingo Doce logo a seguir ao almoço. Caixas abertas e gente por todo o lado, gente sisuda, gente com pressa, gente como toda esta gente cor pastel que se infiltra por esta cidade.
De repente, entre o ruído de fundo da tentativa de música ambiente, os bip's das registadoras e o remexer dos sacos de plástico, eleva-se a voz de um homem; eleva-se a tudo isto, suave mas firme, registo grave mas melodioso, e todo o resto parece silenciar-se.
"Ai milho verde, milho verde,
ai, milho verde, milho verde..."
Assim, sem mais nem menos, sem um "dá-me licença", um cliente da caixa três começa a cantar com uma potência do fundo da alma, afinado e encantado da vida, enquanto arruma as poucas compras nos sacos.
"Ai milho verde, milho verde,
ai, milho verde, milho verde..."
Fez-se o silêncio e todos os olhos naquele espaço depositaram-se sobre este homem, fadista de supermercado, cantadeiro de fila de espera, cabelos grisalhos e redondos como a voz, bigode saliente a unir duas bochechas rosadas de saúde.
"Ai milho verde, milho verde,
ai, milho verde, milho verde..."
Arrumadas as compras, ergueu os sacos com um só braço e, sem para de cantar, observou numa lenta rotação todos os rostos presentes e rematou, com a mesma melodia:
"Vou-me embora, vou-me embora,
eis chegada a minha hora
nada mais tenho a comprar
Vou-me embora, vou-me embora,
vou-me embora e vou feliz
vou-me embora a cantar."
E saiu.
Durante breves instantes, enquanto a estupefacção assentava, ninguém se mexeu.
A menina da caixa um disse, a medo, "Tristeza... mais um maluco..."
Tristeza?
Olhei ao meu redor. Ninguém mais tinha tirado os olhos da porta, por onde o cantor fizera a sua saída. Lentamente, tudo voltou ao normal.
Quase normal: todos tinham um sorriso nos lábios. Durante breves instantes, todas as pessoas de cor pastel pareciam ter desaparecido e, no ar, flutuava um ligeiro aroma a milho.

4 comentários:

S. disse...

Milho verde, ou então, pipoca.

Anónimo disse...

Já nao se pode cantar em pleno super mercado que dizem que é maluco! Eu vi um que foi pa um programa de televisao sentado numa sanita! :p
Eu acho que ele fez muito bem, quem canta seus males espanta!

Henrique da Silva disse...

Felizes são aqueles que conseguem exprimir os outros temem pensar!

Henrique da Silva disse...

faltou - o que... os outros
(desculpa, tou bebadp) ;)