Breve crónica alucinada resultado de uma noite mal dormida

João Pirinéu queria ser um grande homem, grande como uma cordilheira, mas falta-lhe um ésse no apelido. Esta grave ausência, que o resume à insignificância do singular, condena-o a remeter-se da cordilheira para um singelo pico e João acorda todos os dias com aquele suspiro demorado de quem aspira à dimensão de um conjunto montanhoso mas não passa de uma mera e vulgar colina humana.
Quando era pequeno, sonhava em ser alpinista, mas a vida é como os mapas antigos onde já nem todos os caminhos vão dar ao destino que queremos. Vai daí, é carteiro; não aufere o glamour de um profissional da escalada mas passa a vida a subir ruas com o mesmo vigor de quem vai a meio caminho do Evereste; não queima narizes nem perde dedos com o frio mas já deu com o nariz na porta várias vezes e sucedeu um outono passado de entalar as falanges numa tampa de correio de mola traiçoeira que lhe deixou algumas gloriosas marcas azuis nas mãos. E não usa botas com picos para o gelo porque o vestuário nos CTT segue normas rígidas e porque, segundo o seu sub-chefe Alcides, estas modernices do calçado não são para aqui chamadas veja lá se cresce homem que os carteiros não são bonecos que para aí andam e se umas botas dessas acertam no cão de alguém ainda temos mais um processo que é coisa que esta delegação não precisa. Dixit.
João Pirinéu pode não ter o tamanho do seu nome nem um emprego à altura mas faz-se valer no que toca às baixas temperaturas que o rodeiam. É um homem quente e caloroso e não há cá ninguém da frente fria que o esmoreça no seu dia-a-dia. Ainda no outro dia o Silva da contabilidade se fez a ele como uma avalanche (raivoso!, destrutivo!, implacável!) mas João nem se mexeu, sereno perante a catástrofe de ter preenchido dois impressos 36-b mesmo quando toda a gente sabe que devia ser só um, mais o duplicado com a assinatura do freguês, e o Silva rugia-lhe de todos os lados e o João ali, impávido, agarrado ao arnês dos seus sonhos, seguro na corda de segurança que é saber que sai às cinco e já são dez para as quatro.
Pode não ser alpinista e pode não ter o tamanho dos alpes, mas por dentro é um monstro geográfico; e qualquer dia, quando conseguir arrancar um sorriso à Vanessa da distribuição e quem sabe uma ida ao café com direito a pastel de nata e soda fresca, quando conseguir um mero olá, estará lá em cima, sobre as nuvens, de bandeira ao vento, no topo do mundo, no tecto da vida.

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