Mais um breve conto

O som aquecido pela madeira do velho rádio Philips da cozinha inundava o corredor vazio, fazendo ondular entre paredes o chorar das guitarras portuguesas de fados antigos, fados velhos, fados bons.
Sentada na cadeira escura, assento palhinha, mãos nos joelhos e olhos na rua, a velha Luísa suspirava contra a janela do quarto de costura, um quarto onde já nada se costurava excepto um ou outro botão foragido e alguma meia vazia de pé e vazia de tecido, furada pela fraqueza, pelo cansaço, pela fadiga que é passar os dias encurralada numa pantufa, encostada à parede junto à janela, à espera que a velha Luísa se mova, que a velha Luísa se desloque para outro hemisfério do apartamento porque meia que é meia foi feita para descobrir o mundo e não para sufocar em calçado ortopédico de trazer por casa, por mais confortável que seja, em infindáveis manhãs e tardes e dias de espera.
Porque espera Luísa? Que tanto aguarda esta velha torcida e balbuciante, esta velha que já não cose toalhas de linho, que já não esgrima a agulha, que já não duela com a tesoura?
Os dias de confortáveis passaram a estéreis.
As flores na cómoda, outrora coloridamente viçosas, foram desmaiando para um castanho rugoso.
Até os cortinados, que costumavam bailar pelos ares ao mínimo alarme de brisa, repousam agora moribundos, acossados pelo ar estagnado do apartamento fechado.
A velha fala de vez em quando. A Morte anda por perto, diz ela, rodeia-me a casa, espreita pelas frinchas e quando não estou a olhar bate à janela e chama o meu nome através do vidro, não a vejo, nunca a vejo, mas sinto-lhe o bafo frio, ouço-lhe a voz, sinto o seu manto negro na sombra que súbito desliza pelo tecto, como agora, vês?, viste?, era ela!, viste a sombra?, era uma mão era um braço era ela por inteiro que me rodeia a casa e não me dá descanso. Ás vezes, quando não estou atenta porque cozinho, porque como ou porque durmo, sei que mexe na minha caixa do correio, revira as cartas e cheira os envelopes, acho que anda a ganhar coragem para me escrever uma carta, um aerograma, um recado que seja, uma linha numa folha a dizer luíza vim para te buscar, assim, luíza com z e letra miúda que a Morte a escrever escreverá como em tempos antigos e para ela todos nós somos arraia pequena de letra minúscula. Todos os dias espero por seu recado mas nada. Porventura calha de a Morte não saber escrever por ninguém lhe ter ensinado em vida, calha de porventura nunca ter tido vida, calha de ser assim e será pior, qualquer dia perde a paciência e arromba esta porta com a foice e colhe-me de surpresa dizendo Olha era para te escrever a avisar mas foi-se, não mo ensinaram em vida e foice, vim para te buscar e pois aqui estou e assim tem que ser.
É por isso que aqui aguardo, explica a velha. Para que a veja. Para que me veja. Para que a consiga olhar no escuro do manto e dizer Escusas deixar recado ó Morte, ouvi-te os passos. Sei que aqui rondas, sei que aqui andas. E estou pronta.

1 comentário:

Anónimo disse...

não percebo mt dos termos técnicos pra expressar o que quero dizer, como tal vai em português corrente!!!
Gostei de ler o trocar de tds aquelas palavras que nos fazem mergulhar nesse conto e sentir cada movimento.
:)