conto no feminino

A verdade é que não te amo e nunca te amei.
Encostei-me a ti como quem se senta num autocarro para fugir da paragem e deixei-me estar de rosto no vidro, a sentir o sol.
Nunca te pedi para sair porque estava encostada e porque assim não era eu que girava pelo mundo mas o mundo que girava por aquela janela e quando dei por mim os anos tinham passado.
É tão simples como isto.
Nunca foste o amor da minha vida, nunca foste o meu homem.
Foste o meu autocarro.
É tão simples como isto.
Reparaste em mim naquele casamento e de repente o casamento era o nosso, foi como se de convidados passássemos a anfitriões.
Lembras-te? Claro que não te lembras, mas foi no casamento da Marta: alguém amigo de alguém apresentou-te a mim e eu deixei-me estar e tu pediste o meu número e eu deixei-me ir, convidaste-me para o cinema e eu deixei-te pagar, encostaste o carro em frente a minha casa e eu deixei-me congelar enquanto os teus lábios se encostavam aos meus e a tua mão subia a minha perna em busca até hoje não sei de quê e eu deixei-te estar.
Foi nessa mesma merda de carro que resfolegaste em cima de mim como um cavalo e fizeste-me a Beatriz e eu deixei-me ir, para longe dali, para longe do carro e dos estofos e do cinto que me perfurava as costas e do teu hálito a cerveja e só quando perguntaste se eu me tinha vindo é que eu vim de regresso aos estofos, ao carro e ao aroma de eucalipto daquele pinheirinho que continuava a abanar no retrovisor.
É tão simples como isso.
Nunca te amei. Nunca te quis. Mas nunca me importei.
Foste o meu autocarro para longe de tudo e eu deixei-me ir.
Nunca sequer te vi como homem. Acho que nunca sequer te vi.
Quando à noite me procuravas na cama as luzes estavam desligadas mas eu fechava os olhos. Nunca percebi o que as tuas mãos procuravam nem o que o teu corpo procurava mas não fazia diferença porque sempre que me abrias as pernas e me esmagavas com o cheiro da cerveja eu já estava sentada no banco com a cara no vidro e com o sol a aquecer-me.
Fazia como sempre. Contigo, com o meu primo Luís e com o meu pai.
Deixava-me ir.
Nunca estive aqui, percebes?
Estive sempre longe de ti, mesmo quando me babavas os ombros com os teus espasmos e me afundavas as ancas no colchão. Nunca estive aqui, excepto quando a Beatriz chorava a meio da noite e tu a chamavas de raio de miúda e eu me levantava para a ir adormecer outra vez com os meus braços.
Só a Beatriz me ligava a ti, porque tu é que a tinhas feito mas eu é que a alimentava todos os dias com os beijos que nunca pensaste que eu tinha.
Por isso é nunca lhe devias ter tocado, percebes?
Não daquela forma. Nunca daquela forma.
Agora se calhar vêm-me buscar.
Agora se calhar vão me tirar da Beatriz e dizer-me que não devia ter feito o que te fiz. Que não tinha o direito de te rasgar a garganta com esta faca que aqui tenho e de ficar aqui onde estou a ver o teu sangue infiltrar-se no colchão, por cima dos lençóis e do teu corpo nu e branco.
Não faz mal.
Eles não sabem que eu não estou aqui.
Eles não sabem que, mesmo que agora me levem para longe da Beatriz, eu já estou com ela, no meu autocarro, as duas sozinhas, com o sol a aquecer-nos o sorriso.
Tão simples como isso.

11 comentários:

I disse...

Se ao menos conseguisse descrever o que senti ao ler estas palavras...está um texto fantástico, poderoso, cheio de raiva e ao mesmo tempo de sentimentos de missão cumprida... De quem é?

Carlos disse...

Patricia:

o texto foi escrito por mim, à uma e meia da manhã, entre um guião e umas respostas de mail. Ás vezes dá-me para estas coisas, não sei.
É uma espécie de descompressão, começar a escrever um texto e ver onde é que ele vai dar.

Anónimo disse...

Eencontrei este blog enquanto procurava artigos sobre o maestro feist..resolvi adicioná-lo pq até achei interessante e porque te achava graça às 2ªs feiras à noite na sic...digamos q vemos as coisas do mesmo ponto de vista...e isso faz-me pensar que não sou a única louca nesta sociedade...
Mas agora que li este texto...além de te achar graça passei a admirar a tua escrita...está espantosa...também costumo ter ideias mirabulantes às tantas da noite...mas não passam de pensamentos...e não serão tão profundos como este...
Este texto poderia muito bem servir de anúncio a instituição de apoio à vítima...
Os meus sinceros parabéns!

Anónimo disse...

Até arrepiou de tão real que parece ser....Parabéns

Anónimo disse...

Carlos, havia já muito tempo que não sentia a pujança de um soco literário como este, um autêntico gancho de esquerda seguido de um uppercut de direita... Brutal e essencial, sem rendilhados, pura arma literária. Pareces quase um Stephen King português.
Eu sou mais virado para a literatura política de intervenção e acho que, nos dias que correm, há que recordar este senhor:


O homem voltou ao solar do amigo
O homem queimou um cigarro na testa
O homem voltou calculando o destino
Andou mais um passo e não viu

Matava ele o tempo numa outra azinhaga
E a voz era fraca ninguém o ouvia
A larva estendia e o sol abrasava
A marcha do tempo parou

Havia uma vala na rua comprida
E a porta travava ninguém o espera
O homem cavava uma cova na vida
Ali nem o céu se calou

Trazia uma ruga na cara comprida
Não vinha pra nada não vinha por nada?
E a rua era larga e a rua era fria
Andou mais um passo e tombou

Havia uma hora que havia uma vida
Que o homem andava que o homem corria
E a porta travava e um tiro partia
A marcha do tempo parou

O homem voltou ao solar do amigo
E a casa era escura e a porta batia
O homem queimou um cigarro na testa
Andou mais um passo e tombou

Na volta era a noite
Chupava-se a vida
Que há tempo e medida
Chupava-se a vida
O homem precisa é dum'outra cantiga
Agora que o frio voltou.

José Afonso.

Um abraço.

karmatoon disse...

Raio do puto...

S. disse...

Levam-na para Tires, é o que é. E a Biazinha vai com ela...
(isto já é a parte da conversa de vizinhança...)

I disse...

Bem, se assim for, acho que estás na profissão errada! Parabéns! Sempre que descomprimires assim, faz por estares perto do computador.
Fica bem

Anónimo disse...

Pode ser um conto. Mesmo que seja fruto da tua imaginação. No entanto, como mãe, se alguém algum dia, fizesse mal ao meu filho, não sei exactamente até onde iria para lhe fazer desejar nunca ter nascido.
Assim, mesmo conto, pode ser tão real!

Anónimo disse...

Escreves divinamente,já pensaste editar qualquer coisa? Adoro ouvir-te e ver-te mas quando te leio fico completamente sem palavras e releio vezes sem fim o que escreves. Acho que devias mostrar-te como escritor ao público em geral.
beijos. Rosa Matos

Unknown disse...

Parabéns! Está lindo e poético, intimista, diria Eileenístico, se não pegasse mal.